Entrevista com a irmã Maria de Guadalupe, SSVM, sobre a guerra, os cristãos perseguidos e o Estado Islâmico. A crise na Síria é uma das mais graves das últimas duas décadas, com milhões de pessoas desabrigadas e mais de 210.000 mortos.
Nesta entrevista a ZENIT, a irmã Maria de Guadalupe Rodrigo, SSVM, compartilha as experiências vividas no país: “Eu não sabia o que era a guerra… Não dá para imaginar o seu alcance até viver isso. É o flagelo mais horroroso que um povo pode sofrer”.
Ela admirava as irmãs do Instituto que se ofereciam para ir a lugares em situações bélicas. Hoje está em Aleppo, vivendo em meio a um conflito há quatro anos “sem ter hesitado em continuar”. E completa: “Viver o dia a dia junto com estes cristãos é um enorme privilégio. Entre eles há mártires e confessores da fé!”.
Para a religiosa de 41 anos, as dimensões desta guerra “fazem pensar que só um milagre poderia detê-la”. E, se há algo que ela aprendeu em terras sírias, é que “os milagres são mais frequentes do que se imagina”. Por isso é que esta missionária da família religiosa do Verbo Encarnado pede: “Não deixemos de rezar pela paz!”.
Ela considera, ainda, que, para dar solução à situação atual, “é preciso acabar imediatamente com o apoio e o financiamento dos grupos terroristas”, como o papa Francisco já disse e repetiu energicamente diante do Conselho de Patriarcas do Oriente.
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ZENIT: Qual é a situação atual na Síria?
Irmã Maria de Guadalupe: A Síria parou de aparecer nas manchetes, mas a situação é essencialmente a mesma. Continuam os enfrentamentos, morrem cristãos todos os dias e o Estado Islâmico está muito longe de ser derrotado. Mas as pessoas aprenderam a conviver com este sofrimento diário. Umas jovens universitárias, que estão cursando do jeito que podem o quarto ano de medicina, me diziam: “Nós entendemos que, nestas circunstâncias concretas, temos que tentar terminar os estudos. E estamos felizes por estar conseguindo”.
ZENIT: Depois de quatro anos de guerra sem trégua, o que a senhora ainda faz na Síria?
Irmã Maria de Guadalupe: Nos anos que eu já tinha passado como missionária no Oriente Médio, achava que conhecia a dor humana em suas manifestações mais cruas. Mas ainda não sabia o que era a guerra… E não dá para imaginar o alcance dela até que se vive isso. A morte violenta de pessoas queridas; o risco de morte cotidiano; o desenraizamento de perder casa, trabalho e futuro; o medo, a fome, o frio e a sede… E tudo isso, somado com a longa agonia de anos, faz da guerra o flagelo mais horroroso que um povo pode sofrer. E é justamente isto o que me encoraja a continuar! Pode existir ocasião melhor para viver em plenitude a nossa vocação de serviço e de entrega?
ZENIT: Eu tenho a impressão de que vocês, missionários, são feitos de outro material…
Irmã Maria de Guadalupe: Se você fala de aptidões naturais, pelo menos no pessoal, eu acho que não. A minha saúde é frágil e eu sempre fui muito medrosa. Quando me dizem: “Irmã, como é que você faz para ficar aí?”, eu sempre me surpreendo: “Pois é! Como é que eu faço para ficar aqui?”. Eu admirava as missionárias do nosso Instituto que se ofereciam para ir a lugares em guerra. “Que coragem! Eu não conseguiria…”. E agora estou vivendo em meio à guerra, já faz quatro anos, sem nunca ter hesitado em continuar aqui. Eu acho que é a graça de Deus, que também nos chega pelo mérito de tanta gente que nos apoia com as suas orações.
ZENIT: Como é o trabalho da sua comunidade religiosa em Aleppo?
Irmã Maria de Guadalupe: O bispo da Síria para os latinos pediu em 2008, à nossa família religiosa do Verbo Encarnado, uma comunidade de sacerdotes e outra de irmãs para a atenção pastoral da catedral de Aleppo e para a direção de uma residência para jovens universitárias pobres. Quando explodiu a guerra, o apostolado adquiriu, obviamente, outras dimensões. As atividades continuam se realizando conforme é possível na situação caótica da cidade. Mas o mais importante é “estar”. Acompanhar, animar, às vezes só escutar, chorar e contar de novo a mesma história. A nossa presença consegue ser mais uma prova de esperança.
ZENIT: Como os cristãos sírios vivem a fé?
Irmã Maria de Guadalupe: Eles conseguem ver com os olhos da fé. Daí a sabedoria que eles têm para compreender e aceitar a dor. Eles não culpam a Deus; muito pelo contrário, eles se apoiam mais ainda nele agora que perderam tudo. Um idoso me dizia: “Precisávamos desta grande provação. O nosso cristianismo estava ‘distraído’ demais com as coisas do mundo”. A fé os faz descobrir que Deus sabe tirar bens do meio dos males. É isto o que leva uma jovem que se aproximou de Deus e da vida paroquial por causa da guerra a dizer: “Não vão acreditar, mas estes anos têm sido os mais felizes da minha vida!”.
ZENIT: O que foi mais marcante para a senhora em todo este período?
Irmã Maria de Guadalupe: Pode parecer um disparate… Mas, compartilhando a vida com esta gente que está sofrendo atrozmente, o que mais me marcou é a alegria deles. Eles sorriem mais do que antes! E festejam porque voltou a energia elétrica, durante uma ou duas horas por dia, ou porque puderam tomar banho, quando vem água, a cada oito dias, e agradecem por cada pequeno presente de Deus. Eles vivem assim e isso é contagioso! O contato tão próximo com a morte faz com que a vida ganhe outro sentido, faz com que se viva plenamente. Não há tempo a perder; este pode ser o meu último dia! Como é que eu quero vivê-lo? Não é a alegria superficial e vazia, mas aquela alegria quase infinita de quem já tem os olhos no céu.
ZENIT: Estes cristãos oferecem ao mundo um testemunho de coerência e fidelidade, não é?
Irmã Maria de Guadalupe: Sem dúvida! É um testemunho edificante e ao mesmo tempo um desafio. Quem não se sente inspirado a dar tudo por Jesus Cristo? Por isso, nós sempre dizemos que, como missionários, recebemos mais deste povo do que damos a ele. Viver o dia a dia junto com estes cristãos é um enorme privilégio. Entre eles há mártires e confessores da fé!
ZENIT: Qual é a causa do conflito e da violência na Síria?
Irmã Maria de Guadalupe: O conflito é muito complexo. Há muitos e diferentes interesses políticos e econômicos, mas todos eles são alheios ao bem do povo. Como diz o Santo Padre, sempre fica a dúvida: “Essa guerra de lá, esta outra dali, porque em toda parte existem guerras, é uma guerra por problemas de verdade ou é uma guerra comercial para vender armas no comércio ilegal?”.
ZENIT: A irrupção do autoproclamado Estado Islâmico era esperada?
Irmã Maria de Guadalupe: Se havia algo que não se esperava na Síria era uma guerra. O ambiente era de tranquilidade e convivência pacífica entre cristãos e muçulmanos. Mas quando os grupos extremistas irromperam no país, era de se esperar, sim, a entrada do Estado Islâmico.
ZENIT: A senhora acha possível uma solução para crise do país?
Irmã Maria de Guadalupe: Eu acho que, para chegar a uma solução, é preciso acabar imediatamente com o apoio e com o financiamento dos grupos terroristas, como o papa Francisco disse e repetiu energicamente diante do Conselho de Patriarcas do Oriente.
ZENIT: Qual pode ser o papel da comunidade internacional?
Irmã Maria de Guadalupe: O papa pediu que o tema seja abordado na ONU, para encontrar o melhor modo de parar esse agressor injusto que é o Estado Islâmico. Acho que deveriam tomar decisões realmente eficazes com base na verdade e na dignidade do ser humano e não em interesses particulares.
ZENIT: Que mensagem a senhora gostaria de dar à opinião pública?
Irmã Maria de Guadalupe: As dimensões desta guerra fazem pensar que só um milagre poderia detê-la. E, se há algo que aprendemos vivendo na Síria, é que os milagres são mais frequentes do que se imagina. Não deixemos de rezar pela paz! Roguemos incansavelmente a Deus, nosso Senhor, o único que pode dobrar e converter os corações!
Fonte: Zenit